O direito de ser criança
Por Daniel Sampaio
Hoje 31.10.10 na Pública
As crianças têm necessidades irredutíveis, como uma vez explicou o prof. João Gomes Pedro. Incluem o direito a uma habitação condigna, a uma alimentação saudável e a uma protecção persistente até à idade adulta; mas também não as devemos privar de um envolvimento emocional adequado, nem podemos esquecer a necessidade de respeitarmos os seus sentimentos ou a urgência de permitir que desenvolvam o seu equilíbrio interno.
De uma forma resumida, têm um direito inalienável: ser criança, o que pressupõe também tempo para brincar e para serem um pouco irresponsáveis, que se vai alterando à medida que crescem: num bom ambiente familiar, a educação deve privilegiar a autonomia sempre que possível.
Enquanto são crianças ou mesmo na adolescência, os filhos absorvem as mensagens dos pais. Quando são pequenas, as crianças transformam o que os pais dizem em verdades universais, que contribuem para formar um sistema de valores que molda a sua personalidade. Além de proteger os descendentes do sofrimento emocional, os pais devem preocupar-se com a transmissão de valores que definam um código ético para o seu futuro.
Diversas razões impedem alguns pais de exercer uma parentalidade adequada. É o caso dos progenitores que exigem aos filhos a satisfação das suas necessidades, transformando as crianças em cuidadores dos próprios pais. Nesses casos, as crianças vêem ser alienado o seu direito à própria infância, passando alguns anos da sua vida infantil a desempenhar o papel de um adulto em miniatura. Nesta infância roubada, ninguém sai vencedor: os pais impedem a autonomia do filho, este arrisca-se a tomar só conta da família sem viver a sua liberdade infantil. Nunca mais o esquecerá.
Já adultos, estas crianças de infância roubada manifestam comportamentos que mostram indirectamente a sua perda. Podem pensar, por exemplo, que tomar sempre as dores dos próprios pais é um objectivo central nas suas vidas, ou que o seu bem-estar interno depende da permanente aprovação dos progenitores. Compreende-se: os pais que vivem centrados sobre si insinuaram quase sempre, junto dos filhos, a insignificância destes. É como se estivessem a dizer que os sentimentos dos mais novos são pouco importantes, ou afirmassem ser apenas decisivo o ponto de vista parental. De algum modo, estes progenitores comportaram-se sempre como crianças irresponsáveis e perdidas, forçando nos filhos um necessário papel protector. Em vez de servirem de modelo, exigiram (às vezes de modo inconsciente) que os filhos tomassem conta deles.
Na clínica psiquiátrica, abundam queixas motivadas por dependências e co-dependências familiares; e muitos comportamentos desajustados no presente estão de facto ancorados nas contas do deve e haver afectivos na família, e são tantas vezes originados em infâncias perdidas. Nas consultas, assistimos a conflitos que surgem centrados no quotidiano, mas que uma análise mais aprofundada descortina raízes perdidas no sótão da infância. Daqui não se pode concluir que todas as pessoas necessitem de vasculhar o passado: um simples olhar para trás pode trazer o fim de uma vida sem autonomia e sem esperança.
Importa que o roubo da infância tenha fim. Nada é definitivo na vida de uma pessoa. Para além do imprevisível que possa acontecer, é decisivo que a infância perdida não se perpetue: para isso, é importante que os legados de culpa, dívida ou missão imposta sejam ultrapassados. A interrupção de um ciclo de dependência infantil e a luta por uma vida adulta com autonomia é libertadora para o próprio e sinal de esperança para as gerações futuras.
d.sampaio@netcabo.pt
Deixe uma Resposta