Ontem na tertúlia “Amanhã, as Mulheres” tentei levantar algumas das questões em que tenho reflectido a partir da experiência da AMPLOS.
Apresentei-as como “dilemas” de resolução difícil mas que espelham quanto a mim o que é de facto a discriminação e como actua dentro e fora de nós. Como falei sem papel, e me atrapalhei um pouco, aqui vai de forma mais arrumada o que quis de facto dizer.
Pensei as questões em torno dos tópicos:
- A relação entre o espaço público e o privado
- A relação entre o indivíduo e a família
- A normatividade e o modo como actua
- A relação entre a parte e o todo na classificação do outro ligada à orientação sexual
- O percurso do ser ao pertencer
Uma das primeiras questões é a da “revelação”, necessária para este grupo minoritário (posto que nenhum outro terá como este de se revelar aos outros). Falei um pouco sobre o coming out do pais que nem sempre acompanha o dos filhos: uns querendo ir mais depressa que os outros, uns querendo abrir portas que outros querem manter fechadas e de como os papéis se alternam (ora pais, ora filhos a sentir que as portas se devem abrir ora pais, ora filhos a dizer “ainda não”). A necessidade de respeitar a vontade dos filhos mas também a urgência em tornar natural a relação com o filho, e deste com a família, e da família com a sociedade. E a questão que por vezes se põe é a de quem começa, por onde e quando? Há muita energia aqui envolvida. E não é uma situação que se revele de um dia para o outro. Vai se resolvendo/ revelando (ou não) sempre de forma diferente porque os interlocutores também vão mudando. É algo com que as nossas famílias vivem e já é um avanço que falemos de famílias e não de indivíduos sózinhos (como também há tantos).
Falei um pouco de como os pais que integram as orientações sexuais não normativas dos filhos criam cumplicidades diferentes com os filhos e de como, a partir da experiência da AMPLOS, tenho sentido que as mães tendem a uma cumplicidade mais silenciosa, e se calhar mais sábia, e os pais se movem mais facilmente no campo social (quando o fazem, claro). Também de como tem sido frequente aparecerem mães que vivem segredos pesados, travando uma enorme luta dentro de si próprias e dentro da família (dentro da própria relação de casal) esperando pacientemente que os maridos/companheiros um dia aceitem os filhos (mais raras têm sido as situações simétricas).
Sobre os aspectos de informação e divulgação, talvez não tenha passado bem a ideia, mas o que queria ter dito é de como o desconhecido paralisa. Esclarecer, informar é fundamental para facilitar a comunicação pais/ filhos que é muitas vezes desigual porque os pais não sabem o suficiente sobre as situações e tropeçam no seu desconhecimento (e preconceito) ainda que estejam cheios de vontade de ajudar. E de como o entendimento necessita de um tempo porque passa também pela relação com a situação nas suas dimensões múltiplas (que também vão se reconfigurando à medida que os filhos vão crescendo).
Descrevi a importância da relação de proximidade com os pais e mães que nos procuram – uma das prioridades da AMPLOS – e de como o chegar próximo e entender um pai ou uma mãe no seu enquadramento familiar, afectivo, cultural é muitas vezes contraditório com o sentido mais colectivo do activismo, e como a AMPLOS tem de conseguir fazer a ponte entre estas duas dimensões: funcionando num tempo mais longo para entender a transformação do outro (respeitando o seu sofrimento e/ou o seu processo de entendimento) e querendo ao mesmo tempo que a transformação social e seu o enquadramento legal se cumpram num tempo curto/ urgente. E como se torna difícil que a segunda atitude não interfira negativamente na primeira, ou de que a primeira (o peso de todas as vivências de proximidade de todas as histórias difíceis) não retire energia para a segunda.
Ainda quanto a essa participação cívica dos pais e mães da AMPLOS, o processo de passagem do ser ao pertencer acontece quando nos damos conta que o que era, sem termos noção disso, um terreno dos outros (ainda que dissemos ser nosso) passa a ser de facto nosso, passa a dizer-nos respeito, porque o sentimos como tal. Aqui temos assistido a uma mobilização que encontra justificação nem sempre em posições racionais ou ideológicas mas muitas vezes em sentimentos muitos afectivos e protectores (felizmente). Forças de afecto que chegam a mover “montanhas” (casos em que pais passam do choque e rejeição para a exposição e denúncia pública).
Em relação a essa participação cívica falei de como me tenho apercebido da necessidade de os pais “nomearem” como parte do processo de integrar. Ou seja de como dizerem que um filho é gay, uma filha é lésbica ou transexual os ajuda no caminho para a integração da situação para si mesmos assim como é útil na denúncia da sua discriminação.O dilema é que os nossos filhos são muito mais do que a sua orientação sexual e ao fazê-lo sentimos que operamos uma injusta redução das suas pessoas a uma característica que define apenas a sua sexualidade e a afectividade que lhe corresponde, mas se não o fizermos estamos a contribuir para perpetuar o indizível, que é infelizmente o que muitos esperam que façamos.
Aqui ficam então as ideias que quis partilhar ontem.
Margarida Faria
Bom dia Margarida,
É tão reconfortante saber que temos alguem como a Margarida para representar a Amplos. Partilho completamente das ideias que transmitiu neste tertulia, só que eu não saberia como fazê-lo. Depois de ter acabado de ler o artº do Jornal Sol “Bastonário: Artigo contra homossexuais é ‘normal’, e estando com vontade de chorar e com um sentimento de revolta, entrar no sit da Amplos é ir à procura de conforto e de forças. Obrigado Amplos, obrigado Margarida.
Obrigada Sara. É bom também receber um comentário como o seu.
Um abraço
Margarida