A AMPLOS
Falar sobre a AMPLOS na celebração do seu terceiro aniversário conduz-me a algumas experiências que vivi e a várias histórias que vão sobrevivendo à erosão (ou à distorção) do tempo e à tirania dos quotidianos. É na recuperação activa destes acontecimentos que ganhamos a consciência clara de que estes forjaram parte do que somos e o quanto contribuem para o facto de usarmos a primeira pessoa do singular (eu) sem que tal nos soe a vaidade ou a narcisismo. Assim, dizer eu sou isto ou aquilo torna-se numa afirmação que se confunde com o desenvolvimento livre e pleno da nossa singularidade. Falarei então de como essa minha singularidade me aproximou das pessoas que aqui estão hoje.
Toda a minha vida tentei fugir à pressão com que nós, bichos humanos, somos empurrados para a necessidade de encontrar explicações lineares para as coisas. O esforço de entender o mundo leva-nos inevitavelmente à necessidade de compartimentar e de categorizar a realidade em pequenos fragmentos, de modo a que a possamos analisar e, supostamente, compreender. Contudo, para quem seja minimamente lúcido, rapidamente se desenvolve a convicção de que esse esforço é seguramente o melhor que temos, mas também que o objectivo que o move é improvável, impossível, redutor e inútil. É com esta contradição em mente que procuramos dar um sentido, uma coerência, um tom único às nossas vidas.
Para mim, ser terapeuta é algo que se liga a esse sentido, a essa coerência ou a essa unicidade. Somente ao fim de 14 anos percebi que ser terapeuta é uma atitude, uma identidade e não uma profissão. É o desejo de ouvir, de abrir palavras, de criar laços, de tentar transformar histórias ou de tentar resgatar liberdades que me move. Mas donde vem isto? De campos tão improváveis como os da Literatura ou da Política. Aquilo que recentemente entendi, é que sempre existiu em mim o gosto de ouvir, de contar, de recontar e de recriar histórias, mas também a força de uma dimensão utópica que visa e visará sempre a transformação de qualquer coisa.
Assim, aquilo que até há poucos anos parecia ser um acaso, ou seja, o facto de em 2006 quando estava a estudar Terapia Familiar ter escolhido juntar os temas LGBT e Família para fazer um trabalho, ganha agora outro sentido. O que se passava é que durante os anos em que estive a estudar numa Faculdade de Psicologia (entre 1994 e 2004) das poucas vezes em que se abordaram os temas da homossexualidade ou da identidade de género existia ainda uma conotação directa ou indirecta com situações ligadas à patologia. Para além disso, quando estudei Psicologia da Família ou Terapia Familiar existia um silêncio total sobre estes temas. Mesmo passados alguns anos, e quando na opinião pública existia uma maior abertura a estes temas, parecia existir uma espécie de antagonismo entre estudar a Família e os temas LGBT. O que aconteceu em mim, e que me fez avançar para este tipo de trabalho, surgiu então da confluência da atitude de abertura e de liberdade do Pedro F. terapeuta e da necessidade de contribuir activamente para algum tipo de transformação social do Pedro F. alinhado com um determinado tipo de matriz ideológica.
O estudo destes temas e o contacto com pessoas LGBT no contexto terapêutico acabou por se desenvolver ao longo dos anos, facto que criou ligações com o movimento associativo. Desta forma, num fim de tarde de Dezembro de 2010, em que botava discurso sobre as questões do coming out e da família no Centro LGBT, aconteceu (mais ou menos) o seguinte : P.F. – Muitos estudos mostram que o factor mais determinante para a adaptação dos pais ao coming out de um filho/filha é a partilha de experiências com outros pais que viveram situações idênticas, especialmente quando enquadrada em associações criadas por pais de pessoas LGBT. Infelizmente, tais associações não existem em Portugal (…) Um amigo fez-me um sinal, duas senhoras levantaram o braço, talvez dizendo existe, existe… No seguimento da conversa, conheci a Margarida e a Anabela e ouvi falar pela primeira vez da AMPLOS e do trabalho que tinha começado a desenvolver. No final, acabei por ser convidado para participar num encontro da AMPLOS. P.F. (pensando) – Estás a ver como o conhecimento é relativo. Eu bem te disse…fragmentos, fragmentos, fragmentos.
Este momento acabaria por firmar a minha relação profissional e afectiva com a AMPLOS, mas também acabaria por coincidir com uma fase em que comecei a fazer psicoterapia de forma mais frequente com pessoas LGB, casais de gays e lésbicas e também com famílias que estavam a viver situações em que os filhos/as tinham feito o coming out. Estas experiências da terapia articularam-se muitas vezes com conhecimentos desenvolvidos a partir das sessões abertas dos encontros da AMPLOS, nas quais tive o privilégio de ouvir e conversar com pais e filhos. A riqueza destes contextos reforçou a minha convicção, mais ou menos identificada na literatura científica, de que grande parte das reacções mais adversas das famílias face ao coming out dos filhos/as espelham mais as dinâmicas anteriores das famílias (mesmo nas questões trans que, como é óbvio, se revestem de aspectos tão distintos como complexos) do que um problema específico ligado ao tema orientação sexual. O que se passa é que, sendo as identidades LGBT estigmatizadas do ponto de vista social, há um agudizar de outros problemas familiares prévios.
Dito isto, apenas saliento que é tão frequente, por exemplo numa sessão de terapia familiar, passarmos da discussão do tema filho/a gay/lésbica para o debate sobre as expectativas dos pais em relação aos filhos e vice-versa, para as dificuldades de comunicação ao longo do ciclo de vida da família, para as dificuldades conjugais dos pais ou até para as relações dos pais com as suas famílias de origem. Da mesma forma, numa sessão de casal passamos da discussão casal gay/lésbica para as singularidades das culturas familiares dos elementos do casal ou sobre a forma como estas influem nas dificuldades de comunicação entre o casal.
Com isto não quero dizer que não existem especificidades que temos de ter em conta quando abordarmos as vidas das pessoas LGBT, mas somente que a compreensão das pessoas e dos mundos que estas trazem dentro se reveste da articulação entre o universal e o singular. É aqui que entra o meu fascínio pela terapia, ou seja, à medida que começamos a conhecer a realidade dos outros, a necessidade de a categorizar torna-se cada vez mais desnecessária e até inútil. Há uma aceitação da realidade do outro e uma tentativa de transformação dessa realidade (porque causadora de sofrimento) que assenta na intimidade dos laços paciente-terapeuta e na liberdade de ambos. No fim, ao descobrirmos a história do outro descobrimos sempre qualquer coisa nossa. E não serão assim as vidas? Estes pontos de contacto entre histórias?
Para terminar, um pequeno apontamento. Nos antípodas do nosso país, ou seja, na Nova Zelândia aconteceu um facto curioso. A dada altura pretendia-se criar uma Associação de Psicoterapeutas, mas para além da designação em Inglês era necessário traduzir essa designação para Maori (a língua nativa), facto que levantava problemas porque terapia ou terapeuta são palavras que não existiam nessa Língua. Consultaram-se especialistas e anciãos e estes chegaram a uma conclusão: a melhor tradução para terapeuta era a de tecedor de histórias. E assim nasceu a Associação Neo-Zelandesa de Tecedores de Histórias. Revejo-me amplamente nessa designação e penso que, de uma forma diferente, é o que fazem os pais e os filhos que aqui estão: tecem histórias, constroem esperanças, reivindicam a soberania do amor, inventam o sentido da vida e a singularidade dos dias.
Pedro F. (20 de Outubro de 2012)
Deixe uma Resposta